GOMA
Entrelinhas
Sylvia Werneck
Linha é um conceito amplo o suficiente para abarcar múltiplas ideias. Na arte, em sua capacidade de esboço, é um dos instrumentos mais primordiais no desenvolvimento de uma obra. Mas a linha não se limita à sua função como base – nem formal e, muito menos, conceitualmente. Pode derivar em narrativa, em relação, em fronteira; reunir ou separar, simplificar ou complicar. Nas incontáveis conversas de partilha de processos, as artistas da Gomagrupa foram descobrindo que as possibilidades mais férteis são aquelas mais emaranhadas, e que é justamente no espaço mais rarefeito das entrelinhas que se aninham as questões mais instigantes.
Essas mulheres-artistas vivem em lugares diferentes e atuam em linguagens variadas. O mote da linha surgiu como provocação para pensarem em suas respectivas poéticas a partir de um tema compartilhado. De início, o projeto fez com que cada uma examinasse sua produção sob uma perspectiva que, em alguns casos, exigia um esforço de análise nem sempre confortável. E o que é fazer arte, senão o embate contínuo com coisas que nos desafiam?
Ana Freitas experimenta linhas inspiradas pela geometria da natureza sem a pretensão de esgotar seus significados através de explicações. Conceitos científicos abstratos ganham corpo em experimentações com diferentes materiais, reinventando-se em formas que identificamos em nosso repertório imagético.
A figura da serpente já foi exaustivamente explorada em mitos e narrativas de doutrinação moral, muito provavelmente porque seus movimentos de linhas sinuosas evoquem o erótico no sentido mais corriqueiro, do sexo. Angélica Arechavala se distancia desse chavão e escolhe o simbolismo de poder da serpente, explorando seus movimentos em cerâmica, pintura e foto-performance.
Conceição Myllena investiga as micro e macro políticas da vida contemporânea. Aqui, ela trata de suturar, com linhas inusuais, fraturas que temos enfrentado no processo de formação do país. Os materiais usados, carregados de significados sócio-históricos, operam como metonímia para problematizar relações geopolíticas.
Fabíola Rosa se debruça sobre questões ambientais, mais especificamente sobre a devastação das matas nativas. À terra arrasada evidenciada pelas imagens tão frequentes de árvores tombadas retratadas com o carvão que resta delas, ela responde com a tentativa de reconstituição a partir de esforços coletivos.
Mariana Vilela questiona a supremacia humana sobre as outras espécies. Com suas máscaras confeccionadas pelo entrelaçamento de diferentes plantas, propõe outros modos, mais harmônicos, de coexistência com os reinos que, no Antropoceno, são explorados, exauridos e tratados como meros recursos.
Mônica Lóss tensiona noções de proteção e agressão a partir de materiais que servem a distintos propósitos, a depender de como são utilizados. Suas peças colocam amor, cuidado e proteção em enfrentamento com realidades como controle, aprisionamento ou agressão. A linha que separa uns dos outros é frágil e precisa ser constantemente renegociada.
Rosana Mariotto subverte a ideia de planos e volumes por meio de processos que desconstroem cânones sacralizados sobre linguagem e técnica. Trabalhando com materiais que pedem paciência e experimentação, ela retira deles possibilidades não convencionais. A porcelana pode ser esticada até atingir a espessura de um papel, ao mesmo tempo em que o papel ousa ganhar o espaço em formas tridimensionais.
Juntas, como Gomagrupa, elas buscaram conhecer outras iniciativas de mulheres que atuam coletivamente. O vídeo Agomamentos deriva de uma chamada aberta feita a coletivos de mulheres em diferentes campos de ação. Representantes de alguns desses grupos falam sobre a construção e manutenção de suas redes, respondendo à provocação “Como fazer em grupa?”
Homogeneizar as pulsões de artistas tão particulares seria uma empreitada quase violenta, que se chocaria com a proposta de alinhavar pesquisas e tecer conexões motivadas por afetos. Unidas em torno da criação artística e dos feminismos, elas estabelecem laços sem perder de vista a particularidade da produção de cada uma. Aqui, é o movimento, e não a (linha de) chegada, a goma da grupa - a trama que elas tecem na urdidura.
Proudly powered by Weebly